sábado, 27 de abril de 2013

Último Soneto

Já da noite o palor me cobre o rosto,
Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!

Do leito, embalde num macio encosto,
Tento o sono reter!... Já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece...
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!

O adeus, o teu adeus, minha saudade,
Fazem que insano do viver me prive
E tenha os olhos meus na escuridade.

Dá-me a esperança com que o ser mantive!
Volve ao amante os olhos, por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!

(Álvares de Azevedo)

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O Amor

MOTE
Amor é chama que mata,
Sorriso que desfalece,
Madeixa que desata,
Perfume que esvaece.

GLOSAS
Amor é chama que mata,
Dizem todos com razão,
É mal do coração
E com ele se endoidece.
O amor é um sorriso
Sorriso que desfalece.

Madeixa que se desata
Denominam-no também.
O amor não é um bem:
Quem ama sempre padece.
O amor é um perfume

Perfume que se esvaece.
(Mário de Sá-Carneiro)


Poeta português, Mário de Sá-Carneiro nasceu em Lisboa em 19 de maio de 1890. Filho único de pai engenheiro, a mãe morreu quando ele tinha dois anos. A infância e a adolescência foram difíceis, marcadas pela angústia e pela solidão. Em 1912 partiu para Paris, onde pretendeu estudar direito frequentando o curso irregularmente, jamais chegou a se formar: as dificuldades emocionais somaram-se as de ordem material. O único amigo era Fernando Pessoa, o compreendeu e ajudou como pôde. Em Lisboa (1913), introduziu-o entre os modernistas da Revista Orpheu e no ano seguinte aparecia o livro de poemas Dispersão. Em suas cartas para Fernando Pessoa acompanhou-se o ritmo crescente de seus problemas, seu desespero, até o suicídio no hotel Nice em Paris a 26 de abril de 1916.
  
Poeta de sensibilidade multifacetada, para Mário de Sá-Carneiro a beleza não era um conceito da sua inteligência, muito mais do que uma ideia ela era, por isso, uma força. Ousando 'correr o risco de encarnar a imaginação na vida', o poeta, através dos seus 'olhos audazes de beleza', nunca 'viu' a atividade literária como um mero instrumento ou sequer uma profissão, mas sim como um ideal que sempre ambicionou, exigiu e colocou acima de tudo. Neste sentido, o seu poetar é a expressão translúcida da sua própria vida, e esta, inteiramente e só 'um cântico de beleza' cantado até à morte.

domingo, 21 de abril de 2013

A Beleza

Eu sou bela, ó mortais! como um sonho de pedra,
E meu seio, onde todos vem buscar a dor,
É feito para ao poeta inspirar esse amor
Mudo e eterno que no ermo da matéria medra.

No azul, qual uma esfinge, eu reino indecifrada;
Conjugo o alvor do cisne a um coração de neve;
Odeio o movimento e a linha que o descreve,
E nunca choro nem jamais sorrio a nada.

Os poetas, diante do meu gesto de eloquência,
Aos das estátuas mais altivas semelhantes,
Terminarão seus dias sob o pó da ciência;

Pois que disponho, para tais dóceis amantes,
De um puro espelho que idealiza a realidade.
O olhar, meu largo olhar de eterna claridade!

(Charles Baudelaire)

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Carmilla - Theatres des Vampires

Sua sombra na beirada de seu leito,
Seu vestido branco e puro
Você a sente em seu peito. 
Não consegue pará-la...
nas espirais de seu doce feitiço
Você consegue senti-la, está tão...
Próxima do seu coração.

Toda noite, após a badalada do último sino
O silêncio aproxima lânguido, gracioso em um transe...

Você não consegue pará-la, não, não consegue falar, não tem como escapar.
Sem sussurros. Sem mágoas. Sem mais a dor. 

Carmilla, venha até a mim.
Mircalla, quero você.
Carmilla, ela vem à seu encalço.
Mircalla, eu quero seu clamor.

Agora a vejo, na beira de minha cama,
Seu vestido branco e imaculado
banhando em uma mancha escarlate.
Não posso pará-la, nas serpentinas de seu feitiço
Sinto-a, tão perto... do meu coração.

Ela traz o desgosto,
Ela é um gélido abraço,
Murmurando palavras insanas
Ela vem lhe trazer a morte.

"És meu. Serás meu."
Ela diz, "amor terá seus sacrifícios..."
"Há uma frieza em seus anos, em seu sorriso infindável melancolia,
recusa propiciar-lhe o último raio de luz."
Vê-a sob a sombra da lua,
parada estática aos pés de sua cama.
Trajando seu vestido de renda branca,
banhada, do queixo aos pés,

Em uma enorme mancha carmim. 
Dizendo novamente:
"Não há sacrifício sem sangue."

Música original: Carmilla - Original Lyrics
Tradução feita por mim. A canção é baseada no conto de Sheridan Le Fanu, que possui o título de Carmilla: A Vampira de Karnstein, publicada em 1872 vinte e cinco anos antes de Drácula (1897) de Bram Stoker.

sábado, 13 de abril de 2013

Die Zauberflöte

Em 30 de setembro de 1791, num teatro do subúrbio de Viena, uma ovação triunfal acolhe A Flauta Mágica (Die Zauberflöte), uma ópera plena de fantasia e no idioma alemão, acessível ao público popular.

Contudo, o compositor, Wolfgang Amadeus Mozart, não teve tempo de saborear o sucesso. Doente, extremamente debilitado, morre em seu leito dois meses mais tarde, aos 35 anos.

Repetidas vezes, Mozart compusera obras em língua alemã, que nunca tiveram maior destaque. Algumas delas, inspiradas na mitologia, pareceram fracas e convencionais, outras mais destacadas, como “O Rapto do Serralho” (1782), se apoiavam unicamente sobre a fibra cômica.

Durante o grande período de criação de óperas que iam deIdomeneu (1781), Rei de Creta (1781) a Cosi fan tutte (1790), Mozart se apoia quase que somente em libretos italianos, notadamente aqueles de Lorenzo Da Ponte, compondo partituras dentro do espírito das obras italianas que gozavam, então, de ampla predileção do público.

Gênio combativo, ele resolveu enfrentar o gosto popular. Transmitiu seu desejo de mudar de gênero musical a um diretor de grupo teatral, Emmanuel Schikaneder, com quem estava ligado por forte amizade. O diretor, que se apresentava em cenas da periferia de Viena, lhe pede então a composição de uma ópera em alemão. Mozart se mostra imediatamente sensível à ideia.

Com A Flauta Mágica, ópera em alemão que alterna palavras e música, é quebrada por fim a concha em que se encerrava o mundo italianista dos salões vienenses e das cortes reais.

Ela se abre a outras fontes de inspiração de essência germânica como a produção de Carl Maria von Weber, trinta anos mais tarde.

Em A Flauta Mágica, ópera carregada de fantasia e mistério, o príncipe Tamino, o caçador de pássaros Papageno e a Rainha da Noite disputam as preferências do público numa encenação repleta de efeitos especiais.

O libreto desta obra feérica, redigido por Schikaneder, está cheio de alusões à franco-maçonaria, uma ordem de iniciação maçônica nascida algumas décadas antes na Inglaterra e à qual pertenciam Mozart e seu libretista.

A Flauta Mágica é um verdadeiro percurso iniciático, como se pode observar ao se ingressar nessa ordem. Há cenas em que se assiste aos padres reunidos como numa loja maçônica.

Valendo-se do concurso de Schikaneder, autor do libreto, e de um outro maçom conhecido pelo nome de Gieseke, Mozart fez alternar cenas cômicas e cenas sérias, o que confere a sua obra um clima mágico e prazeroso que incorpora também um conteúdo filosófico.

A música de A Flauta Mágica brilha por sua inventividade e ressoa diretamente no espírito dos ouvintes. Excertos vertiginosos, como aquele da Rainha da Noite, terror dos sopranos que devem entrar de pronto numa ária que termina por uma série de vocalises, são sucedidos por passagens narrativas como a ária do caçador de pássaros Papageno, e de cantigas “uma mulher, apenas uma menina”.

Marchas solenes, estrondo de trovões, mas também duetos com repetição de palavras e ainda de instrumentos inesperados como a charamela ou o carrilhão juntam-se à diversidade do conjunto. Não há lugar a enfado no curso daquelas duas horas e tanto de divertimento musical e de espetáculo cênico.

Quando de sua criação, os artistas, ainda que não estivessem entre os mais renomados à época, compenetraram-se de seu papel com paixão, o que assegurou à representação de estreia imenso sucesso. Mozart, ele próprio regendo a orquestra, sentiu-se amplamente reconfortado.

A Flauta Mágica seria levada à cena mais de 100 vezes no ano que se seguiu. Infelizmente, seu genial compositor não teve tempo de desfrutar do enorme êxito da peça visto que faleceu em 5 de dezembro de1791, pouco tempo depois da primeira apresentação, quando concluía o Requiem, sua derradeira obra-prima.

O público moderno pôde assistir à A Flauta Mágica, belamente filmada pelo cineasta sueco Ingmar Bergman, e a vida de seu autor, romanceada por Milos Forman, no premiadíssimo filme Amadeus.

Lindíssima obra criada por Mozart, principalmente algumas de suas árias, que tornaram-se muito conhecidas, como o dueto de Papageno e Papagena, e as duas árias da Rainha da Noite.

Link: Ópera Mundi

sexta-feira, 5 de abril de 2013

O Jardim

Existe um jardim antigo com o qual às vezes sonho,
sobre o qual o sol de maio despeja um brilho tristonho;
onde as flores mais vistosas perderam a cor, secaram;
e as paredes e as colunas são idéias que passaram.

Crescem heras de entre as fendas, e o matagal desgrenhado 
sufoca a pérgula, e o tanque foi pelo musgo tomado.
Pelas áleas silenciosas vê-se a erva esparsa brotar,
e o odor mofado de coisas mortas se derrama no ar.

Não há nenhuma criatura viva no espaço ao redor, 
e entre a quietude das cercas não se ouve qualquer rumor.
E, enquanto ando, observo, escuto, uma ânsia às vezes me invade
de saber quando é que vi tal jardim numa outra idade.

A visão de dias idos em mim ressurge e demora, 
quando olho as cenas cinzentas que sinto ter visto outrora.
E, de tristeza, estremeço ao ver que essas flores são
minhas esperanças murchas -
e o jardim, meu coração.

(H. P. Lovecraft)