domingo, 11 de janeiro de 2015

O Sistema do Doutor Alcatrão e do Professor Pena - Edgar Allan Poe

Antes de começar a postagem, gostaria de desejar um Feliz Ano Novo à todos! Bom, resolvi postar mais um conto fabuloso do Poe logo no começo porque acabei de assistir um filme chamado Stonehearst Asylum ou Eliza Graves que é baseado justamente nesta história do autor. O conto também é conhecido como O Sistema do Doutor Abreu (é desta forma que é referido nesta versão) e do Professor Pena.
Curiosidade: O conto de Machado de Assis, O Alienista, é baseado neste escrito de Poe. 



 ¹ Publicado pela primeira vez no Graham's Lady's and Gentleman’s Magazine, novembro de 1845. Título original: The System of Dr. Tarr and Prof. Fether. O título original deste famoso conto de Poe é The System nomes evidentemente burlescos e intraduzíveis, pois tarr significa em inglês "alcatão", "breu","betume", e fether é vocábulo puramente fantástico. O "Sistema" do "Dr. Tarr & Prof. Fether", que serve de base a este conto, é uma conhecida forma de punição, existente outrora nos Estados Unidos, e que consistia em besuntar a breu e cobrir de penas os condenados, fato que se designava pela expressão to tar and feather somebody. (N.T.)


Durante o outono de 18..., enquanto dava um giro pelas províncias do extremo sul da França, levou-me a estrada que eu seguia a poucas milhas de certa casa de saúde ou hospício particular, acerca do qual muito me haviam falado em Paris alguns médicos meus amigos. Como nunca houvesse visitado um lugar dessa natureza, julguei excelente a oportunidade para poder perdê-la; e, assim, propus a meu companheiro de viagem (um cavalheiro que conhecera casualmente poucos dias antes) que nos desviássemos, uma hora ou mais para percorrer o estabelecimento. Recusou-se ele a isto, alegando pressa, em primeiro lugar, e, em segundo, o horror que habitualmente provoca a vista de um alienado. Rogou-me, porém que não, sacrificasse a uma simples cortesia para com ele a minha satisfação de curiosidade e disse que continuaria a viagem, vagarosamente de modo que eu pudesse alcançá-lo durante o dia, ou em qualquer caso, no dia seguinte.

Ao despedir- se de mim ocorreu-me que poderia haver alguma dificuldade em obter entrada no edifício e mencionei meus receios a esse respeito. Ele respondeu que, de fato, a menos que eu tivesse conhecimento pessoal com o diretor, Sr. Maillard, ou alguma credencial em forma de carta, alguma dificuldade poderia haver, uma vez que regulamentos desses hospícios particulares eram mais severos do que as normas dos hospícios públicos. Quanto a ele,ficara conhecendo, havia alguns anos, o Sr. Maillard e, portanto, me acompanharia até à porta, para apresentar-me, embora seus sentimentos, relativamente à loucura, não lhe permitissem entrar na casa.

Agradeci-lhe e, desviando-nos da estrada principal, entramos por um atalho relvoso que, dentro de meia hora, quase se perdia numa densa floresta que cobria a base de uma montanha. Por entre esse bosque úmido e sombrio, cavalgamos umas duas milhas, até que a casa de saúde foi avistada. Era um fantástico castelo, bastante deteriorado e realmente pouco habitável, pela sua aparência de velhice e desleixo. Seu aspecto encheu-me de verdadeiro terror e, detendo o meu cavalo, já estava meio resolvido a voltar. Logo, porém, envergonhei-me de minha fraqueza e continuei.

Ao nos dirigirmos para o portão de entrada notei que ele estava semi-aberto e que um homem espreitava pela abertura. Logo depois esse homem adiantou-se, abordou meu companheiro, chamando-o nome, apertou-lhe cordialmente a mão e convidou-o a apear-se. Era o próprio Sr. Maillard. Era ele um cavalheiro do velho estilo, de imponente e bela aparência, de maneiras polidas e certo ar de gravidade, dignidade, e autoridade que impressionava bastante. Depois de apresentar-me, meu amigo mencionou meu desejo de visitar o estabelecimento e recebeu do Sr. Maillard a segurança de que me prestaria todas as atenções; depois despediu-se e não mais o vi.

Depois que ele se foi, o diretor conduziu-me a uma saleta pequena e muito bem cuidada, contendo, entre outros indícios de refinado gosto, muitos livros, quadros, vasos de flores e instrumentos musicais. Vivo fogo ardia na lareira. Ao piano, cantando uma ária de Bellini, estava sentada uma mulher jovem e belíssima, que, à minha entrada, parou sua canção e acolheu-me com graciosa cortesia. Sua voz era grave e todas as suas maneiras reservadas. Julguei, também, notar sinais de tristeza em seu semblante, que era excessivamente pálido, embora não fosse isso desagradável para meu gosto. Trajava de luto fechado e provocou, em meu coração um sentimento misto de respeito, admiração e interesse.

Eu ouvira falar, em Paris, que o instituto do Sr. Maillard, conduzido de acordo com o que vulgarmente se chama sistema da brandura; que todas as punições eram proscritas, que mesmo a reclusão só era empregada raramente, que os pacientes, embora secretamente vigiados, eram deixados, em aparente liberdade e que a muitos deles se permitia andar pela casa e pelos jardins vestidos com os trajes comuns das pessoas de juízo perfeito.

Tendo em vista tais impressões, tornei-me cuidado sobre o que pudesse dizer diante da jovem senhora, pois nada me assegurava que ela estivesse no gozo da razão; e, de fato, certo brilho inquieto que havia em seus olhos levou-me quase a imaginar que não estava. Limitei, pois, minhas observações a temas gerais e àqueles que pensei não desagradarem nem excitarem um alienado. Ela respondeu de modo perfeitamente racional, a tudo quanto eu disse e mesmo suas observações pessoais eram assinaladas pelo mais profundo bom-senso;
mas um longo conhecimento da metafísica da demência me ensinara a não depositar fé em tais demonstrações de sanidade mental, e continuei a usar, durante toda a palestra, da preocupação com que a iniciara.

Em seguida, um elegante criado de libré trouxe uma bandeja com frutas, vinho e outros refrescos, de que me servi; a senhora logo depois, deixou o aposento. Depois que partiu, voltei os olhos de modo interrogativo, para o dono da casa.

- Não - disse ele. - Oh, não! É uma pessoa de família ... Minha sobrinha, uma senhora muito prendada.
- Peço mil perdões pela suspeita - repliquei -, mas naturalmente o senhor sabe como desculpar-me. A excelente administração de seu estabelecimento é muito bem compreendida e, Paris e eu pensei que seria bem possível, o senhor sabe.
- Sim, sim. . . Não diga mais. . . Ou antes, eu é que lhe deveria agradecer pela recomendável prudência de que o senhor usou. Raramente achamos tamanha previsão entre os jovens, e mais de uma vez vários contratempos lastimáveis ocorreram em consequência de imprevidência da parte de nossos visitantes. Quando meu primitivo sistema estava sendo empregado e era dado aos meus pacientes o privilégio de andarem para um lado e para outro, à vontade muitas vezes eram eles levados a perigosas crises, por pessoas que irrefletidas que eram convidadas a visitar a casa. Fui então impor um rígido sistema de seleção e só obtêm acesso ao edifício aqueles com cuja discrição posso contar.
- Quando seu primitivo sistema estava sendo empregado! - disse eu, repetindo-lhe as palavras. - Quer dizer, então que o "sistema da brandura", de que tanto ouvi falar, não é mais usado?
- Faz já - replicou ele - diversas semanas que decidimos renunciar a ele para sempre.
- Deveras? O senhor me deixa atônito!
- Achamos que era, meu senhor - falou ele, com profundo suspiro – inteiramente necessário voltar aos antigos processos. O período do sistema da brandura era a todos os momentos aterrador, e suas vantagens foram avaliadas com excesso. Creio, meu senhor, que nesta casa foi feita uma experiência leal entre as que mais o foram. Fizemos tudo quanto a razão humana podia sugerir. Lastimo que o Sr. não nos tenha podido fazer uma visita antes, para , poder ter julgado por si mesmo. Mas presumo que conhece o sistema da brandura… e seus pormenores.
- Não completamente. O que dele ouvi foi de terceira ou quarta mão.
- Posso definir o sistema, então, em termos gerais, como um sistema em que os pacientes eram dirigidos pela satisfação de seus desejos. Não contrariávamos as fantasias que entravam no cérebro do louco. Ao contrário, não só as permitíamos como as estimulávamos e muitas de nossas curas permanentes foram efetuadas assim. Não há argumento que tanto atinja a razão fraca do alienado do que a da reductio ad absurdum. Tivemos, por exemplo, homens que se consideravam pintos. A cura consistia em insistir sobre isso como um fato, em acusar o paciente de estupidez por não perceber, suficientemente que isso era um fato, e, desse modo, em recusar-lhe , durante uma semana, outro regime alimentar que não o próprio de um pinto. Desse modo, um pouco de grão e de areia chegava a obter maravilhas.
- Mas essa espécie de aquiescência era tudo?
- De modo algum. Depositávamos muita fé nas diversões de espécies simples, tais como música, danças, exercícios ginásticos em geral, jogos de baralho, certas espécies de livros, etc. Fingíamos tratar cada indivíduo como se sofresse de alguma moléstia física comum; e a palavra "loucura" nunca era empregada.Um dos pontos importantes estava em encarregar cada alienado de vigiar as ações de todos os demais. Depositar confiança na compreensão ou na discrição de um louco é ganhá-lo de corpo e alma. Desse modo podíamos dispensar um corpo de guardas, tão dispendioso.
- E não havia punições de espécie alguma?
- Nenhuma.
- E o senhor nunca encarcerou seus pacientes?
- Muito raramente. De vez em quando, a doença de alguma pessoa se transformava numa crise ou tomava um súbito aspecto de fúria; levávamos-lo, então, para uma cela secreta a fim de que sua agitação não contagiasse os demais, e ali o conservávamos até poder devolvê-lo a seus amigos, pois nada fazemos com os loucos furiosos. Habitualmente são eles removidos para os hospícios públicos.
- E o senhor agora mudou tudo isso... Pensa que foi para melhor?
- Perfeitamente. O sistema tinha suas desvantagens, seus perigos mesmo. Felizmente, está ele agora proscrito de todas as casas de saúde da França.
- Fico muito surpreendido com o que o senhor me diz - falei.
- Estava certo de que, neste momento, nenhum outro método para tratamento da loucura existisse em qualquer parte do país.
- O senhor é jovem ainda, meu amigo - replicou o dono da casa. - Mas chegará o tempo em que aprenderá a julgar por si mesmo do que se passa no mundo, sem confiar nas tagarelices alheias. Não acredite em nada do que ouve e só a metade do que vê. Ora, acerca de nossa casa de saúde, é certo que algum ignorante o
enganou. Depois do jantar, porém, quando o senhor estiver suficientemente descansado da fadiga de sua viagem a cavalo, sentir-me-ei feliz por mostrar-lhe um sistema que, na minha opinião e na de todos que testemunharam sua aplicação, é, incomparavelmente, o mais eficiente de quantos já se imaginaram.
- E seu? - interroguei. - E algum de sua própria invenção?
- Tenho orgulho em reconhecer que é - replicou ele - pelo menos, em certa parte.
Desse modo, conversei com o Sr. Maillard uma ou duas horas durante as quais ele me mostrou os jardins e as estufas do lugar.
- Não posso deixá-lo ver neste momento os meus pacientes - falou ele. - Para um espirito sensível há sempre, mais ou menos, alguma coisa de chocante em tais exibições e não desejo privá-lo do apetite de jantar. Vamos jantar juntos. Poderei oferecer-lhe vitela à Ia Saint Menehoult, couves-flores en veloutée sauce. Depois de um copo de Clos de Vougeôt, seus nervos, então, estarão suficientemente
firmes.

Às seis horas foi anunciado o jantar, e meu anfitrião conduziu-me a uma grande salle à manger, onde se reunia uma companhia bastante numerosa: vinte e cinco ou trinta ao todo. Eram aparentemente, gente fina, certamente de elevada educação, embora suas vestes fossem extravagantemente ricas, participando algo demais do apuro ostentoso da vieille cour ². Verifiquei que, pelo menos  dois terços dos convivas eram mulheres e várias delas, de modo algum se trajavam de acordo com o que um parisiense consideraria bom gosto nos dias que correm. Várias senhoras, por exemplo, cuja a idade não podia ser menos de
setenta anos, ornamentavam-se com uma profusão de jóias, como anéis, braceletes, brincos, e traziam o peito e os braços vergonhosamente nus. Observei, também que muito poucos dos vestidos eram bem feitos ou, pelo menos, que muito poucos condiziam com quem os usava. Olhando em torno descobri a interessante moça a quem o Sr. Maillard me apresentara na saleta mas grande foi minha surpresa ao vê-la usando um vestido de anquinhas, com sapatos de salto alto e uma touca suja de ponto de Bruxelas, demasiado grande
para ela e que lhe dava à face uma expressão ridícula de diminuição. Quando primeiro a vira ela trajava, deve ser lembrado, luto fechado. Havia um ar de extravagância, em suma, em todas as roupas de todos os
convivas, que me trazia ao pensamento ao pensamento a ideia primitiva do "sistema de brandura" e fazia-me imaginar que o Sr. Maillard pretendera iludir- me, até depois do jantar, para que eu não experimentasse sentimentos desagradáveis durante a refeição, ao encontrar-me jantando com doidos. Mas lembrei-me de ter sido informado em Paris de que os provincianos do sul são um povo particularmente excêntrico, com um vasto número de idéias antiquadas; e, depois de conversar com diversos membros da companhia, minhas apreensões foram imediata e completamente dissipadas.

A própria sala de jantar, embora talvez suficientemente confortável e de boas dimensões, nada tinha de muito elegante. Por exemplo, no soalho não havia tapetes; na França, contudo, o tapete é dispensado freqüentemente. As janelas, também, estavam sem cortinas, os postigos, quando fechados, eram seguros por barras de ferro , solidamente aplicadas em diagonal, à maneira dos de nossas lojas.

² Velha corte, referindo-se ao Império ou à Restauração. Pode também traduzir-se por "sabor velho". (N. T.)

O aposento observei, , formava, sozinho, uma ala do castelo e assim as janelas estavam em três lados do paralelogramo, ficando a porta do outro. Não havia menos de dez janelas ao todo. A mesa estava soberbamente servida. Sobrecarregada de baixela de prata e mais do que sobrecarregada de iguarias. A profusão era inteiramente bárbara. Havia manjares bastantes para saciar os enaquim³. Nunca, em toda a minha vida, havia eu testemunhado tão pródigo e tão ruinoso gasto das boas coisas da vida. Parecia, porém, haver muito pouco bom-gosto nos arranjos e meus olhos, acostumados a luzes suaves, sentiam-se doloridamente feridos pelo maravilhoso clarão duma quantidade enorme de velas que, em candelabros de prata, estavam colocadas sobre a mesa e por toda a sala, em qualquer parte onde fosse possível achar um lugar. Havia numerosos criados diligentes em servir e, sobre uma larga mesa, na extremidade do aposento, achavam-se sentadas sete ou oito pessoas com rabecas, flautas, trombones e um tambor. Esses camaradas me aborreceram bastante, a intervalos, durante a refeição, com uma infinita variedade de barulhos que pretendiam ser música e que pareciam proporcionar bastante prazer a todos os presentes, com exceção de mim mesmo.

Sobretudo, não podia eu deixar de pensar que havia muito de esquisito em tudo quanto via... Mas, afinal, o mundo é composto de toda a casta de pessoas com todos os modos de pensar e toda a espécie de costumes convencionais. Havia viajado também bastante para ser adepto completo do nil admirari; de modo que tomei acento, com toda a calma, à direita do diretor e, estando com excelente apetite , fiz justiça aos bons petiscos postos à minha frente. Entretempo, a conversação se animara e generalizara. As senhoras como de costume, falavam torrencialmente. Logo verifiquei que quase todos os presentes eram bem-educados e o diretor era ele só um mundo de anedotas divertidas. Mostrava-se completamente satisfeito em falar de sua posição como diretor de uma "casa de saúde" e, de fato, com grande surpresa minha, o tema de loucura era o preferido por todos os presentes. Estórias engraçadíssimas eram contadas, com referências as manias dos pacientes.

³ Tribo de gigantes que, segundo fala o Antigo Testamento, habitavam as montanhas de Canaã : Josué: XI, 21 (N. T.)

- Tínhamos outrora aqui um camarada - disse-me um homenzinho gordo que estava sentado à minha direita -, um camarada que se julgava bule de chá. E, a propósito, não é caracteristicamente singular que essa mania típica seja tão freqüente na cabeça dos loucos? Poucos são os hospícios de alienados da França que não possam apresentar um bule humano. O nosso camarada era um  bule de porcelana inglesa e mostrava-se cuidadoso em polir todas as manhãs com pele de gamo e cré.
- E depois - disse um homem alto, justamente em frente a nós - tivemos aqui, não faz muito, uma pessoa que metera na cabeça a idéia de que era um jumento, e que, alegoricamente falando, o senhor dirá ser perfeitamente exato. Era um doente incômodo e tínhamos uma trabalheira para impedir que se se excedesse. Durante muito tempo não queria comer outra coisa que não fosse cardo. Mas logo o curamos desta ideia insistindo para que ele só comesse isso mesmo. Depois ocupava-se continuamente a escoicear… assim. . . assim…
- Oh! Sr. De Kock! Ficar-lhe-ia muito grata se o senhor se contivesse! - interrompeu-o aqui uma velha sentada ao lado dele.
- Guarde, por obséquio, seus pés para si mesmo! O senhor estragou meu vestido de brocado! Será necessário, pergunto, ilustrar uma observação num estilo tão realista? Nosso amigo aqui presente pode decerto compreendê-lo sem necessidade disso. Palavra de honra, o senhor é quase tão grande jumento como se imaginava aquele pobre coitado. Tão certo como vivo, sua maneira de agir é bastante natural.
- Mille pardons, Ma'm'selle! - respondeu o Sr. De Kock, assim interpelado. - Mil perdões! Não tinha a intenção de ofender. Ma'm'selle Laplace, o Sr. De Kock concederá a si mesmo de beber vinho em sua companhia. - Aqui o Sr. De Kock curvou-se bem baixo, beijou sua própria mão, com bastante cerimônia, e tomou vinho com Ma'm'selle Laplace.
- Permita-me, mon ami - disse agora o Sr. Maillai dirigindo-se a mim -, permita-me enviar-lhe um pedaço desta vitela à la Saint Menehoult. O senhor vai achá-la particularmente delicada. 

Neste momento, três robustos criados tinham acabado de conseguir depositar a salvo, sobre a mesa, um pratarraz, ou travessa contendo o que eu supunha ser o monstrum horrendum, informe ingens, cui lumen ademptum4.

Monstro horrendo, informe, enorme e privado da luz. (N. T.) 

- Não, obrigado - respondi. - Para falar a verdade, não sou particularmente amante da vitela à la Saint... como disse o senhor?, pois acho que não me sabe lá muito bem. Mudarei de prato, porém, e comerei um pouco de coelho. Havia na mesa vários pratos laterais contendo o que parecia ser o comum coelho francês, um morceau 5 verdadeiramente delicioso que posso recomendar.

- Pedro- gritou o diretor. Mude o prato deste cavalheiro e siirva-lhe um pedaço
desse coelho au-chat 6.
- Desse o quê? - perguntei.
- Desse coelho au-chat.
- Bem, Obrigado... pensando bem, agradeço. Vou-me servir dum pouco de presunto.
- "Não se sabe o que se come - pensava eu comigo mesmo - nessas mesas de gente da província. Não quero provar nada do tal coelho au-chat e, pelo mesmo motivo, nem tampouco de seu chat-au- rabbit (gato ao estilo de coelho)."
- E depois- disse um sujeito de aspecto cadavérico, perto da extremidade da mesa, retomando o fio da conversa, onde fora partido - depois, entre outras estranhezas, tivemos um doente, em certa época que, com bastante teimosia, sustentava que era queijo e andava com uma faca na mão solicitando aos amigos
que provassem uma pequena fatia do meio de sua perna. Está fora de dúvida que era um grande maluco - interpôs alguém- mas não se compara com certo indivíduo que nós todos conhecemos com exceção desse
estranho. Refiro-me ao homem que acreditava ser garrafa de champanha e que sempre disparava com um estalo e um assobio, assim… E aqui o orador, a meu ver, com bastante rudeza, meteu o polegar direito na
bochecha esquerda, retirou-o com força produzindo um som semelhante ao espocar duma rolha de garrafa, e depois com destro movimento da língua sobre os dentes, provocou um assobio agudo que durou alguns instantes, imitando o espumejar da champanha. Este procedimento, digo-o com franqueza, não foi
muito do agrado do Sr. Maillard, mas este cavalheiro nada disse, e a conversa foi reatada por um homenzinho bastante chupado com um grande chinó.
- Havia também aqui um imbecil - disse ele - que se tomava por uma rã, com quem, a propósito, parecia mesmo e não pouco. Gostaria que o senhor o tivesse visto, cavalheiro - e aqui o orador se dirigiu a mim -, ter-lhe-ia feio bem ao coração ver o jeito natural com que ele se apresentava. Cavalheiro, se aquele homem não era uma rã, posso apenas observar que é pena que o não fosse. Seu coachar era assim: O-o-o-o-gh... o-o-o-gh... era a nota mais bela do mundo…... si bemol! E quando ele punha os cotovelos em cima da mesa, assim... depois de ter tomado um copo ou dois de vinho… e escancarado a boca, assim. . . e revirado os olhos assim... piscando-os com excessiva rapidez, assim... oh! então cavalheiro, faço questão de afirmar, da maneira mais categórica que o senhor teria ficado extasiado diante do gênio do homem.
- Não ponho absolutamente em dúvida - disse eu.
- E depois - disse outra pessoa -, depois havia um tal Petit Gaillard, que julgava ser uma pitada de rapé, e se sentia verdadeiramente aflito por não poder agarrar a si mesmo entre o polegar e o indicador.
- E havia também Jules Desoulières, que era um gênio bem singular, de fato, e ficou doido com a idéia de que era uma ábobora. Andava perseguindo o cozinheiro, para que o metesse num pastel, coisa que o cozinheiro, indignado, recusou-se a fazer. Pela minha parte não afirmarei que um pastel de abóbora à la Desoulières não tivesse sido de fato um delicioso acepipe.
- O senhor me espanta! - disse eu, olhando, interrogativamente, para o Sr. Maillard.
- Ah, ah, ah! - riu este cavalheiro. Eh, eh, eh! ih, ih, ih! oh, oh, oh! Uh, uh, uh! Muito bom, deveras! O senhor não deve ficar espantado, mon ami. Nosso amigo aí é um brincalhão…um drôle… Não deve tomar ao pé da letra o que ele diz.
- E depois - disse outra pessoa do grupo -, depois havia Bouffon Le Grand, outra extraordinária personagem no seu gênero. O amor atrapalhou-lhe a cabeça e ele se imaginava possuidor de duas. Uma, sustentava ele que era a cabeça de Cícero, a outra imaginava-a composta, sendo de Demóstenes do alto da fronte até a boca, e de Lorde Brougham, da boca até o queixo. Impossível não era que estivesse enganado, mas teria convencido o Sr de que estava certo, pois era homem de grande eloqüência. Tinha absoluta paixão pela oratória e não se podia coibir de exibi-la. Costumava, por exemplo, pular sobre a mesa de jantar assim… e assim…. Aí um amigo, ao lado do orador, pôs-lhe uma mão sobre o ombro e cochichou-lhe algumas palavras ao ouvido, cessando ele logo após de pular e deixando-se cair sentado em sua cadeira
- Havia ainda - disse o amigo que havia cochichado - um tal Boullard, o pião. Chamo-o pião porque, de fato, metera-se-lhe na cabeça a mania engraçada, mas não de todo irracional de que fora transformado num pião. O senhor rebentaria de riso se o visse rodopiando. Girava num só calcanhar uma hora inteira, desta
forma. .. assim... Então, o amigo a quem ele havia interrompido há pouco com um cochicho fez a mesma coisa com ele.
- Mas então - gritou uma velha, de voz esganiçada - o seu Boullard era um doido, e um doido muito estúpido, pelo menos , pois quem já ouviu falar, permita que lho pergunte, em peão humano? A coisa é absurda. A Sra. Joyeuse era uma criatura muito mais sensata, como o senhor sabe. Tinha uma mania, mas inspirada pelo senso comum, e dava prazer a todos que tinham a honra de conhecê-la. Descobriu, depois de madura reflexão, que, em virtude de qualquer acidente, tinha-se transformado em galo novo. Mas, como tal, portava-se normalmente. Batia asas com prodigioso resultado, assim …assim... assim. . . E quanto a seu canto, era delicioso! Coooocoricóóó! Cooocoricóóó! Cooocoooriiiicóóóóó!
- Madame Joyeuse, agradecer-lhe-ei se se comportar - interrompeu aí , com cólera, o nosso hospedeiro. - Ou a senhora se conduz como uma dama... ou pode deixar a mesa imediatamente! Escolha!

A senhora (que muito me espantara ouvir chamar Madame Joyeuse, depois da descrição da mesma Madame Joyeuse que ela dera) enrubesceu até às sobrancelhas e pareceu profundamente envergonhada com a censura. Abaixou a cabeça e não disse uma sílaba de resposta. Mas, outra senhora, mais jovem,
retomou o tema. Era a minha bela moça da saleta.

- Oh, Madame Joyeuse era uma doida! - exclamou ela. - Mas havia realmente muito bom-senso, afinal de contas, nas idéias de Eugênia Salsafette. Ela era uma jovem dama muito bela e extremamente modesta, que considerava indecentes as modas comuns do vestuário e que sempre queria vestir-se colocando-se por fora em vez de ficar por dentro de suas roupas. É uma coisa que, no fim de contas, se faz muito facilmente. Basta fazer assim. . . e depois assim... assim... e depois...
- Mon Dieu! Ma'm'selle Salsafette! - gritou então uma dúzia de vozes, imediatamente. - Que está fazendo? Pare com isso! Chega! Vemos muito claramente como se pode fazer isso! É bastante! Pare com isso ! E diversas pessoas já saltavam das cadeiras para impedir que Ma'm'selle Salsafette se colocasse em pé de igualdade com a Vênus de Médicis, quando a questão foi muito eficaz e subitamente resolvida por uma série de gritos altos ou berros vindos de certa parte principal do castelo.

Meus nervos estavam muitíssimo abalados, na verdade, por esses gritos, mas tive realmente compaixão do resto dos convivas. Nunca vi nenhum agrupamento de pessoas de juízo tão completamente assombradas, em toda a minha vida. Todos empalideceram como outros tantos cadáveres e, encolhendo-se nas cadeiras,
tremiam e falavam coisas desconexas, de terror, prestando atenção a que o som se repetisse. Ele veio de novo, mais alto e mais próximo, e repetiu-se terceira vez, muito alto e a quarta vez com vigor evidentemente diminuído. A esse aparente morrer do ruído, todos imediatamente recuperaram o ânimo e tudo se tornou, como dantes, vida e anedota. Aventurei-me, então, a inquirir da causa da perturbação.
- Mera bagatela - disse o Sr. Maillard. - Estamos acostumados a essas coisas e realmente muito pouco nos incomodamos com elas. Os loucos, de vez em quando, se põem a berrar em conjunto; um excitando o outro, como sucede às vezes, à noite, com um bando de cães. Ocasionalmente sucede porém que o
concerto de berros é seguido por simultâneos esforços de escapula, e então, naturalmente, deve-se temer algum perigo.
- E quantos doidos estão a seus cuidados?
- Atualmente, não temos mais de dez, ao todo. Principalmente mulheres, presumo?
- Oh, não! Posso dizer-lhe que são todos eles homens, e sujeitos corpulentos.
- Sim, senhor! Sempre ouvi dizer que a maioria dos doidos era do sexo fraco.
- Geralmente assim e', mas nem sempre. Há algum tempo havia aqui vinte e sete
pacientes e desse número nada menos de dezoito eram mulheres; mas
ultimamente as coisas mudaram como vê.
- Sim... mudaram muito, como vê - interrompeu aí o cavalheiro que quebrara quase
as canelas da Ma'm'selle Laplace.
- Sim… mudaram muito, como vê! - carrilhonou em coro, o grupo todo.

5 Bocado, pedaço. (N. T.)
6 Estilo gato. (N. T.)



- Contenham a língua todos vocês! - disse meu hospedeiro com grande fúria.

Daí por diante, os convivas mantiveram um silêncio mortal cerca de um minuto. Certa senhora, mesmo, obedeceu ao Sr. Maillard ao pé da letra, e pondo para fora a língua, que ela excessivamente comprida, segurou-a com ambas as mãos até o fim do festim .

- E aquela senhora - disse eu ao Sr. Maillard, inclinando-me , para ele e falando num cochicho -, aquela boa senhora, que falava há pouco e que nos apresentou o cocoricóóóó... ela, presumo, é inofensiva, inteiramente inofensiva?
- Inofensiva! - falou ele, com surpresa não fingida. - Ora…ora, que quer o senhor dizer?
- Só levemente doente? - respondi, tocando na cabeça. - Acho que ela não está particularmente. . . nem seriamente enferma, hem?
- Mon Dieu! Que está o senhor imaginando? Essa senhora, minha particular e velha amiga, Sra. Joyeuse, é completamente tão sã como eu. Tem lá suas pequenas excentricidades, é certo, porém, o senhor sabe, todas as senhoras de idade. . . todas as senhoras bastante idosas... são mais ou menos extravagantes.
- É certo - disse eu. - E certo. . . mas então, esses outros senhores e senhoras.
- São meus amigos e meus guardas - interrompeu o Sr. Maillard, levantando-se com hauteur -, muito bons amigos meus, e meus assistentes.
- Como! Todos eles? As mulheres e tudo?
- Certamente - disse ele. - Nada poderíam fazer sem as mulheres: elas são as melhores enfermeiras do mundo para alienados. Têm um jeito todo seu, o senhor sabe; o brilhos dos seus olhos produzem efeito maravilhoso.. . algo como a fascinação das serpentes, o senhor sabe?
- É certo - falei -, é certo. . . Mas comportam-se um tanto estranhamente, hem? São um tanto extravagantes... não é? Não pensa asssim ?
- Estranhas! extravagantes! O senhor realmente acha? Ora, não somos muito afetados aqui no sul e fazemos o que nos agrada muito ao nosso bel-prazer... Gozamos a vida, e isso é tudo que o senhor sabe.
- É certo- falei. - É certo!
- E depois, talvez, esse Clos de Vougeôt suba um tanto à cabeça, o senhor sabe?... Um pouquinho forte... o senhor compreende, não é?
- É certo - falei -, é certo! A propósito, meu caro senhor, ouvi-o dizer que o sistema que adotou, em lugar do famoso "método da brandura", era o da mais rigorosa severidade.
- De modo algum. A reclusão é necessariamente estrita; mas o tratamento… o  tratamento médico, quero dizer, é mais agradável aos pacientes do que dantes.
- E o novo sistema é de sua própria invenção?
- Não , no todo. Algumas partes dele devem ser atribuidas ao Professor Abreu, de quem o senhor, por certo, já ouviu falar; e, além disso há modificações no meu plano que me sinto feliz em reconhecer pertencerem de direito ao célebre Pena, o qual, se não me engano o senhor tem a honra de conhecer intimamente. Sinto-me completamente envergonhado ao confessar - que nunca ouvi antes o nome de qualquer desses cavalheiros.
- Deus do céu! - exclamou meu anfitrião, puxando a cadeira abruptamente para trás e erguendo as mãos. - Certamente não ouvi bem! O senhor não quer dizer, não é? que nunca ouviu falar no erudito Dr. Abreu ou no célebre Prof. Pena?
- Sou forçado a confessar minha ignorância - respondi -, mas a verdade deve ser mantida intata acima de todas as coisas. Não obstante, sinto-me humilhado ao extremo por não conhecer as obras desses homens, sem dúvida extraordinários. Irei procurar seus estudos, para examiná-los com acurado cuidado. Sr. Maillard, o senhor realmente - devo confessá-lo -, o senhor, realmente, fez com que eu me
envergonhasse de mim mesmo! - E essa era a verdade.
- Não diga mais nada, meu jovem amigo - disse ele bondosamente, apertando-me a mão. - Acompanhe-me agora numa taça de Sauternes.

Bebemos. Os demais seguiram nosso exemplo sem restrição. Tagarelavam, divertiam-se, riam, cometiam mil extravagâncias; e as rabecas guinchavam, o tambor matraqueava, os trombones urravam, outros outros tantos touros brônzeos de Falaris.. . tornando-se o espetáculo cada vez pior, à medida que o vinho dominava, para transformar-se numa espécie de pandemônio in petto. Entrementes , o Sr. Maillard e eu, com algumas garrafas de Sauternes e Vougeôt entre nós, continuamos nossa conversação esganiçadamente.
Uma palavra proferida no tom comum não tinha mais probabilidade de ser ouvida do que a voz de um peixe saindo da catarata do Niágara.

- Meu senhor - disse eu, berrando-lhe na orelha - o senhor mencionou algo, antes do jantar, acerca do perigo e antigo sistema da brandura. Como é isso?
- Sim - replicou ele -, por vezes havia, em verdade muito grande perigo. Não se pode confiar nos caprichos dos alienados. E na minha opinião, assim como na do Dr. Abreu e do Professor Pena, nunca se deve permitir que eles andem livremente e sem vigilância. Um doido pode ser "abrandado", como se por algum tempo, mas, no fim, ele é muito capaz de tornar-se turbulento. Sua malícia, aliás, é grande e proverbial. Se ele tem um projeto em vista, oculta seu desígnio com maravilhosa sabedoria; e com que finge estar de juízo perfeito apresenta ao psicólogo um dos mais singulares problemas no estudo da mente. Quando um doido parece completamente são, na verdade, é tempo de pô-lo em camisa-de-força.
- Mas o perigo, meu caro senhor, do qual o senhor falava na sua própria experiência, durante sua gestão nesta casa- teve o senhor motivos práticos para pensar que a liberdade é inconveniente no caso de um louco?
- Aqui? Por minha própria experiência? Ora posso dizer que sim. Por exemplo: não faz muito tempo, uma singular ocorrência deu-se nesta própria casa. O sistema de brandura, como o senhor sabe, estava então sendo empregado e os pacientes andavam em liberdade. Comportavam-se notavelmente bem.. .
maravilhosamente bem.. . e qualquer homem de juízo poderia ter sabido que algum projeto diabólico estivesse sendo tramado, só por aquele fato particular de que os sujeitos se comportassem tão notavelmente bem . E, bem certo, um belo dia os guardas acharam-se amarrados de pés e mãos e jogados nas celas, onde eram tratados, como se eles é que fossem os doidos, pelos próprios doidos, que haviam usurpado as funções dos guardas.
- Não me diga isto! Jamais ouvi coisa tão absurda na minha vida!
- É fato. Tudo veio a realizar-se por intermédio dum camarada estúpido.. . um doido, que, duma maneira ou de outra, metera na cabeça a idéia de haver inventado um sistema de governo melhor que qualquer outro de que já se ouvira falar antes, quero dizer, de governo de doidos. Desejava pôr à prova, suponho eu, sua invenção, de modo que persuadiu o resto dos pacientes a se juntar a ele numa conspiração para derrubar os poderes reinantes.
- E conseguiu isso, realmente?
- Sem dúvida alguma. Os guardas e os guardados tiveram em breve de trocar de lugares, com a diferença, porém, que os doidos ficaram livres, mas os guardas foram lançados, imediatamente em celas e tratados, sinto ter de dizé-lo, de maneira bem cavalar.
- Mas, presumo que uma contra-revolução se efetuou prontamente. Esse estado de coisas não se podia ter prolongado. Os camponeses da vizinhança, os visitantes que vinham ver o estabelecimento por certo o alarme. Aqui é que o senhor se engana. O chefe dos rebeldes era demasiado astuto para que tal acontecesse. Não admitiu daí por diante nenhum visitante, com exceção, um dia, de um jovem de ar bem idiota, do qual não havia motivo de receio. Deixou que visitasse a casa, justamente para variar um pouco, para se divertir um pouco à custa dele. Tão logo zombou o suficiente do moço, deixou-o sair para que fosse
tratar de seus negócios.
- E quanto tempo então durou o reinado dos doidos?
- Oh! i, muito tempo! Deveras, certamente um mês.. . ou muito mais do que isso; não posso afirmar com certeza. Entrementes os doidos como o senhor poderia jurar, trataram de aproveitar explendidamente a oportunidade. Tiraram suas roupas esfarrapadas e forragearam, à vontade, no guarda-roupa e nas jóias da
família. As adgas do castelo estavam bem providas de vinho e aqueles danados doidos são gente que sabe como bebê-lo. Posso assegurar-lhe que passaram à tripa forra.
- E o tratamento? Qual era a espécie particular de tratamento que o chefe dos rebeldes pôs em execução?
- Oh!, quanto a isto, um louco não é necessariamente um maluco, como já tenho observado; e é minha honesta opinião que o tratamento dele era muito melhor do que o anterior. Era um sistema verdadeiramente excelente, de fato. . . simples. . . asseado…sem complicações …delicioso deveras… Era…

Aqui as observações do meu interlocutor foram cortadas cerce por outra série de berros da mesma espécie daqueles que antes que nos haviam desconcertado. Desta vez, porém, pareciam provir de pessoas que se aproximavam rapidamente.

- Deus do céu! - exclamei. - Os malucos se escaparam, sem dúvida alguma!…
- Receio bastante que assim seja - replicou o Sr. Maillard, tornando-se agora excessivamente pálido. Mal acabara ele de falar, quando altos clamores e imprecações se ouviram por baixo das janelas e, imediatamente depois, tornou-se evidente que algumas pessoas lá fora estavam tentando forçar a entrada na sala.

Batiam a porta, com algo que parecia um malho e os postigos eram arrebentados e abalados com prodigiosa violência. Seguiu-se um espetáculo da mais terrível confusão. Com grande espanto meu, o Sr Maillard lançou-se para debaixo do aparador. Havia esperado de sua parte mais decisão. Os membros da orquestra que  durante os últimos quinze minutos pareciam demasiado bêbados para executar a sua tarefa, ergueram-se todos imediatamente, pegando dos instrumentos, e, trepando em cima de sua atacaram, num só tom, o Yankee Doodle, que cantaram, com justeza, pelo menos com uma energia sobre-humana, durante todo o tempo do tumulto.

Entretanto, para cima da principal mesa de jantar, entre as garrafas e copos, pulou o homem que com tanta dificuldade fora impedido de pular para cima dela antes. Logo que se instalou comodamente, começou um discurso que, sem dúvida, teria achado excelente, se pudesse ter sido ouvido. No mesmo homem que tinha
predileção pelos piões se pôs a girar pela sala, com imensa energia, e com os braços estendidos em ângulo reto com o corpo, de modo que tinha o ar completo dum verdadeiro pião, derrubando qualquer corpo que acontecia em seu caminho. E então, ouvindo também um inacreditável estouro e espumejar de champanha, descobri, afinal, que provinham da pessoa que, durante o jantar, desempenhara o papel de garrafa de tão delicada bebida. E depois, novamente, o homem-rã coaxava como se a salvação de sua alma dependesse de cada nota que emitia.  E, no meio de tudo isto, o contínuo zurrar dum jumento a tudo dominava. Quanto à minha velha amiga, Madame Joyeui fazer chorar o seu aspecto de terrível perplexidade. Tudo quanto fazia era ficar a um canto, junto da lareira, e cantar se esganiçadamente. "Coooocoooriiiicóóóó!" Por fim sobreveio a crise suprema, a catástrofe do drama, como nenhuma resistência, além da algazarra, dos berros e dos cocoricós era oferecida aos esforços dos assaltantes, as dez janelas foram de pronto e quase simultaneamente arrombadas. Jamais esquecerei as sensações de espanto e de horror, quando vi, pulando pela janela, e caindo entre nós de roldão, lutando, pisando, esfolando um perfeito exército do que tomei por chimpanzés, orangotangos ou aqueles grandes e pretos bugios do cabo da Boa Esperança. Recebi terrível pancada depois da qual rolei para baixo do sofá e ali fiquei quieto.

Depois de ter ficado ali uns quinze minutos, durante cujo tempo ouvi, com todos os meus ouvidos o que estava sucedendo na sala, cheguei por fim a um desenlace satisfatório dessa tragédia. Pelo que parece, o Sr. Maillard, ao narrar- me a estória do doido que excitara seus companheiros à rebelião , estivera apenas apenas a relatar suas próprias proezas. Esse cavalheiro tinha sido de fato, dois ou três anos antes, o diretor do estabelecimento, mas veio a ficar doido também e se tornou assim um dos pacientes. Este fato não era do conhecimento do meu companheiro que me apresentou. Os guardas, em número de dez, tendo sido subitamente dominados, foram primeiro besuntados de breu e em seguida, cuidadosamente cobertos do penas, e por fim lançados nas celas subterrâneas. Tinham estado assim presos mais de um mês, durante cujo período o Sr. Maillard lhes havia generosamente concedido não somente breu e penas (que constituíam seu sistema) mas também um pouco de pão e água em abundância era- lhes dada diariamente em forma de duchas. . . Por fim, um tendo-se escapado por um esgoto, deu liberdade aos demais. O "sistema de brandura" - com importantes modificação - foi restaurado no castelo, mas não posso impedir-me concordar com o Sr. Maillard, que seu próprio "tratamento" era, no seu gênero, excelente. Como havia ele justamente observado, era "simples, asseado. . . e sem complicação de espécie alguma".

Tenho apenas a acrescentar que, embora haja procurado em todas as livrarias da Europa as obras do Dr. Abreu e do Prof. Pena, não consegui ainda, até hoje, apesar de meus esforços, arranjar um só exemplar.
                                                                 

6 comentários:

  1. Muito divertido esse conto! Poe sempre nos surpreende :)

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    1. Olá Carolina, fico agradecida que tenha gostado! Poe sempre surpreende com seus seus contos com certeza.

      Abraços.
      Bid you adieu...

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Assisti ao filme refúgio do medo, gostei muito. Procurando saber um pouco mais, descobri que foi baseado nesse conto de Poe.
    Fiquei feliz em achá-lo aqui. Com certeza irei lê-lo. Se o filme foi impressionante, quão mais será o conto?
    Partiu, ler!

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    1. Fico imensamente contente em saber que gostou do filme. Espero que também goste do conto.

      Bid you adieu...

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  4. Olá!
    Obrigada por postar esse conto...há muito queria lê-lo...
    Podes me dizer de que ano é essa tradução/edição? Se não for muito incomodo...
    Desde já, gratidão :)

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